sábado, 24 de junho de 2017

[Prosa sem bússola nem destino]

A cada manhã do Inverno nevoeirento o homem atravessa para o lado das moagens escolhendo a mesma passadeira, das cinco ou seis que ligam a cidade velha ao passeio que ladeia o canal e une as duas pontes. Do lugar à janela em que me instalo para ficar de dentro a ponderar o bulício urbano, vejo-o aproximar-se no seu passo absorto e enfrentar a passadeira finalmente de rosto erguido. Não levanta o rosto para prestar atenção ao trânsito: aos automóveis só dispensa a visão periférica e talvez a audição, os olhos varrem o asfalto zebrado e sobem pela parede do edifício do outro lado da rua, para fixar então a imagem que ali se encontra. Faz toda a travessia da estrada sem desviar o olhar da parede, e no final do percurso, quando já tem os dois pés sobre o passeio oposto, detém-se e demora-se ali todos os sessenta segundos de um bom minuto. É como se pela primeira vez descobrisse a imagem e se interessasse por a decifrar ou como se naquela parede estivesse algo da sua devoção, um ícone a que devesse uma homenagem quotidiana, uma oração, como algumas pessoas de gerações mais velhas ainda fazem diante de pequenas capelas, cruzeiros ou estatuária religiosa distribuída pelas cidades.

Do meu posto não conseguiria dizer se se trata de um mapa, de um cartaz publicitário ou de um painel de azulejos com uma figura de santo, pelo que tive de numa das manhãs sair para o frio e ir eu próprio espreitar. Descobri um banal poster a promover uma linha de lingerie. Um modelo feminino olha-nos daquela parede, não com lubricidade ou malícia, não a convidar-nos a fantasiar episódios eróticos. Não se trata de uma colecção destinada a seduzir os companheiros das mulheres que a comprem, mas de peças íntimas para usar no dia-a-dia, confortáveis e elegantes e, sim, com inevitável sensualidade. A mulher apresenta uma expressão não direi beatífica mas de certo modo misteriosa, melancólica e carismática, a fazer-nos hesitar entre uma alma clandestinamente sofredora ou uma pessoa apenas introspectiva, com o pensamento longe do estúdio onde se deixou fotografar. Na verdade, a mulher não nos olha, antes fixa um ponto aquém de nós — o balanço da sua semana, os planos para depois da sessão fotográfica, a dor ou o motivo da sua melancolia, nunca saberemos o quê. Um cartaz de roupa interior pode ser, por talento ou acaso, a versão contemporânea e igualmente enigmática, embora sem esboço de sorriso, da mais pudenda Mona Lisa.

Primeiro observamos-lhe o olhar, ligeiramente realçado por um risco de lápis, alvitrando razões e motivos para aquela pose ou aquele estado de espírito. Depois descemos pelo pescoço e não temos como evitar os seios, de áurea proporção, sustidos sem necessidade aparente por uma peça de desenho simples e sem rendas. Mais abaixo há uma barriga lisa e uma púbis que pede menos atenção, não por falta de beleza ou semelhante perfeição nas medidas e linhas, mas porque o enquadramento e a luz destacam o rosto e os seios. Ou talvez haja afinal no rosto e nos seios algo menos comum que nos solicita observação detalhada e meditação. Pergunto-me se são estas as questões que afloram o espírito do homem que ali se detém quotidianamente — uma necessidade imperiosa de concluir alguma coisa sobre a modelo da fotografia — ou se ele é apenas um voyeur que se conforta a si mesmo por usar um poster em vez da imagem viva das adolescentes que frequentam a escola do outro lado do canal.

De todos quantos se tenham já apercebido do vício daquele homem, da sua necessidade diária de satisfazer o olhar na esquina antes da ponte, poucos terão talvez a minha propensão para a condescendência. Não vejo motivos para o julgar ou fazer piadas visando o embaraço de alguém que é apanhado a cobiçar um corpo numa fotografia, a sonhar com seios cuja posse lhe parece tão distante quanto a elegância ou a riqueza. Tem uma figura triste e pesada e veste sem a pretensão de atrair por sua vez olhares, não olhares admirativos, em todo o caso. Mas eu estou disposto a dar-lhe a hipótese de uma história pessoal menos evidente, a de alguém que vê na fotografia a imagem de uma ex-amante e a olha todos os dias com inultrapassada perplexidade pelo fim da relação, com mágoa por resolver, nostalgia suave ou saudade dilacerante. As modelos, pelo menos as de pósteres de tiragem recente, não são Giocondas renascentistas com biografia imponderável, têm decerto uma vida e relações sociais e amorosas, maridos ou amantes orgulhosos ou ciumentos que hão-de regularmente cruzar-se com a sua imagem em suportes publicitários de rua e que em algum momento tomarão o seu tempo perante as fotografias a remoer a raiva ou a satisfazer a vaidade. Conheci um tipo que se separou porque não aguentava ver a sua mulher, actriz, contracenando em amplexos amorosos e beijos lânguidos com actores a esmo. Evitava os cinemas e a televisão, mas não podia esconder-se sempre da publicidade de rua, que sendo estática não é menos intrusiva e favorece uma observação mais prolongada.

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